03 February 2010

Irreversível

É tão díficil começar a escrever, tranformar o que sentimos em palavras que se possam entender, quando ainda não se entendeu nada... Quase como se olha uma cara e se reconhece mas não se sabe de onde, como um computador que bloqueia. Hoje aconteceu, foi verdade, foi real e contudo parece tudo tão im-possível. Hoje ouvi falar médicos como tu, ouvi falar em prolongamento da vida, brindei à minha existência e à existência de outras 500 pessoas, mas a partir deste dia, ou melhor de ontem, 2 Fevereiro 2010, apenas poderei brindar à tua memória.

Lembro-me de jogarmos os Blue Brothers e o Prince of Persia no computador do teu irmão que religiosamente tratávamos como se fosse um objecto precioso (há 15 anos era uma espécie de), existiam vacas e campos verdes e café de cevada na cozinha que dava para o quintal. Tu no 10º ano, eu no 7ºano, eu a tentar perceber "A dúvida é a pedra de toque da verdade, o ácido que dissolve os erros", filosofia de 10º ano, "explica-me o que significa", campos verdes outra vez quase sempre em tua casa, das primeiras vezes que o meu pai foi tentar a aventura MAKRO tu também vieste. Pelo meio, após 8 anos, o meu irmão e a tua irmã deixaram de ser namorados. Nós prosseguimos a nossa amizade quotidiana até ao teu 1ºano de faculdade, meu 10ºano, eu a entrar no liceu, tu a deixares o liceu para entrar em medicina, 20 às três disciplinas no tempo em que eram apenas três disciplinas. Ainda nos vimos no início, mas depois perdi-te o rasto. Momentaneamente. Chegou o meu 1º ano de Faculdade, um trabalho de parapsicologia, era dos telemóveis, recupero o teu contacto e tu participas no questionário para o meu trabalho. Uns anos mais tarde a tua mãe (que foi o grande amor do meu pai antes da minha mãe) tem um AVC ou uma outra catalogação médica que a impede de prosseguir a vida trabalhando, ficando numa espécie de invalidez, recuperando aos poucos com apuncunctura, "Se precisares estou aqui", começamos a ter aulas de ténis à semana, tu a estudares para o exame da ordem, eu sem futuro profissional definido, convido-te para o meu aniversário e tu conheces o Leandro (meu amigo e meu colega das aventuras musicais), enamoram-se, entras em Anestesiologia, treinas em "porcos" (animais mesmo) para entrar para o INEM, eu entretanto entro para a ALERT, tu e o Leandro vão viver juntos para Espinho (indecente eu nunca ter ido conhecer a casa), eu começo a quase não estar em Portugal, deixo de jogar ténis, vamos trocando umas mensagens, na vespera de Natal fazes anos (daí o teu nome) e disse-te que gostava muito de ti (o Leandro disse-me hoje que gostavas muito de mim). E como dizia uma das tuas irmãs hoje "é tão injusto"... tão injusto tombar (eu imagino tombar) sobre um livro de medicina e estudar para seres ainda melhor, para salvares mais vidas, para honrares o juramento que fizeste. Irónico, não é? Eu no carro com o meu irmão do domingo a dizer "Tenho que ligar à Natália e ao Leandro para nos encontrarmos". Irónico.

As minhas lágrimas, primeiro interiores, depois exteriores, tão reais como tu hoje na madeira cercada pelas nossas orações. Como tudo é injusto, irónico, irreversível. Para mim, a morte é a única coisa irreversível na vida, o acontecimento sem resposta, inevitável.

Há pessoas que fazem a diferença, não só na vida de outras pessoas (por ligações pessoais) mas a um nível mais macro, societário e como eu acredito que tu farias a diferença, desde o tempo em que passeávamos pelos campos, e eu atenta à tua inteligência, positivismo, sensibilidade, sentido prático, valores, princípios, a rectidão que não te vi perder ao longo dos anos.

E contudo hoje - the end - após 30 anos. O mundo perdeu valor. Comigo ficarão as recordações, as fotografias que imobilizam o tempo e os campos verdes, contigo na memória, de sempre, para sempre.

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